Não tenho saudades do passado.
A minha terra, quando eu era pequeno, era um local cinzento e cheio de cicatrizes, assim uma espécie de sarjeta – dessas onde aquele deputado isolado do parlamento, a quem eu chamo o Menino Mussolini, gostava de ver de volta.
Não tenho saudades da ordem na ponta das espingardas e dos escândalos atrás das portas. Prefiro armas à vista, de preferência entregues para abate, e escândalos que possam ser julgados pelo Estado de direito, à vista e de preferência entregues à justiça, para abate.
Não tenho saudades do passado, mas sei que foi lá que ficou a minha juventude – dessa, em certos estranhos dias, tenho algumas saudades -, descobertas infinitas e sobretudo o nascimento para a cultura que, desde que o País se libertou dos Mussolinis de trazer por casa – por casa, pelos ministérios, pelos latifúndios, pela repressão, pela perseguição, pela proibição, pela guerra e pela descriminação sem escrúpulos nem limites – me foi possível apreciar: o tempo encheu-se-me então de livros e horizontes.
Não tenho saudades do passado mas também não fico contente e alarve com a impotência do presente. Temo pelo futuro.
O Menino Mussolini que estende a sua mãozinha de afaga falanges e mente descaradamente convencendo os outros de que transporta a Verdade, tem um grupo de seguidores temíveis. Alguns põem nas redes sociais que “aquele sim é um homem com sentido de estado”, provavelmente de estado novo, mas não lhes chega a língua para tanto. Não se esqueça que não há maior traidor do país em que nasceu do que aquele que usa a palavra pátria para enganar o seu semelhante.
Não tenho saudades do passado.
Recordo que descobri no passado algumas leituras que me arquitetavam e faziam crescer.
Descobri há pouco, numas caixas, obras de alguns autores que me fizeram. Tenho aqui agora o Correspondente de Guerra, de John Steinbeck, e espanto-me: como é que alguém conseguia escrever sobre coisas tão cruéis sempre à procura do lado mais doce dos humanos? Nas batalhas mais trágicas ele fazia ouvir o voo apaziguador das últimas aves sobreviventes.
Não tenho saudades do passado mas do jovem que eu era a aprender coisas assim, com uma disponibilidade altruísta que me impedia ainda de vomitar sempre que oiço o Menino Mussolini na nossa Assembleia. Eu era um jovem ingénuo e disponível, acho.
Lembro-me de uma passagem do livro em que Steinbeck fala de um ator, um comediante, Bob Hope, um dos maiores no seu género e do seu tempo, e de como sofreu e viu coisas horríveis, fazendo diminuir aos outros o sofrimento e acrescentar-lhes dons do que pode ser no mundo, mesmo nos tempos mais cruéis, destacando o lado maravilhoso e doce da vida. E como terá sofrido, o ator. Steinbeck escreve uma frase inesquecível sobre ele: “Tendo-se convertido em símbolo, tem de levar uma vida simbólica”. Ainda hoje penso nisso, negando o passado como um antro de saudades e quimeras, que é a forma mais simbólica com que me liberto do que já passou.
Não tenho saudades do passado nem consideração por aqueles que o desejam.
Ainda há futuro há nossa espera. Marcamos encontro mais adiante. Levarei os olhos cheios do que ainda não vivi.
Alexandre Honrado
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